[Agência FAPESP] Macacos-prego que passam mais tempo no chão mostram maior diversidade no uso de ferramentas

Notícia publicada na Agência FAPESP em julho/2023 sobre as pesquisas do projeto CapCult, que é desenvolvido por alguns dos nossos membros.

Karina Ninni | Agência FAPESP – Em artigo publicado recentemente no American Journal of Biological Anthropology, o primatólogo Tiago Falótico e o etólogo Eduardo Ottoni correlacionam a diversidade no uso de ferramentas à terrestrialidade em um grupo de macacos que habita a Serra da Capivara (PI). Segundo Falótico, o grupo é bastante peculiar e faz uso de ferramentas como nenhum outro observado antes.

“Mensuramos que os macacos-prego do Parque Nacional da Serra da Capivara passam 41% do tempo no chão, o que é uma taxa altíssima. Os macacos neotropicais são quase todos arborícolas, então há poucos relatos sobre esse tema. A literatura aponta que primatas neotropicais passam normalmente menos de 1% do tempo no chão. Agora, há esses macacos de Cerrado e Caatinga que ficam muito tempo no chão. E eles eram pouco estudados”, resume Falótico, que é pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).

Ele explica que o contexto do uso de ferramentas é bastante diverso nesse grupo em relação a outros, como o da Fazenda Boa Vista, também no Piauí. “Lá na Boa Vista, eles só usam as ferramentas para quebrar cocos. Mas passam, em média, 27% do tempo no chão, o que já é bastante para esses primatas. Na Serra da Capivara, eles quebram cocos, sementes e escavam com as ferramentas de pedra em busca de alimentos, como aranhas, batatinhas e raízes. Também batem pedras para comunicar agressão, como forma de ameaça.”

Em outro trabalho, publicado em 2013, a dupla de cientistas já havia demonstrado que as fêmeas desse grupo específico da Serra da Capivara haviam até mesmo incorporado um novo comportamento para “exibição sexual”, utilizando pedrinhas. “Elas jogam pedrinhas nos machos para chamar a atenção. Nos macacos-prego, as fêmeas, quando entram no cio, adotam comportamentos como vocalizações e expressões faciais para chamar a atenção do macho. Nesse grupo percebemos o comportamento inovador de jogar as pedrinhas.”

Ele afirma que a correlação entre a terrestrialidade e o uso de ferramentas era uma hipótese. “Os macacos-prego de algumas populações usam ferramentas porque têm necessidade. Têm pouca comida e precisam usar ferramentas. Nós e outros grupos já havíamos demonstrado a ‘hipótese da oportunidade’: quando eles têm o recurso [as pedras e o alimento] disponível, eles começam a usar ferramentas e as usam mais. Neste último trabalho, o que eu queria mostrar é se essa população, que tinha diversidade maior de ferramentas, era também mais terrestre. E a comparei com a da Fazenda Boa Vista, que fica no mesmo Estado. As duas populações usam ferramentas, mas a da Serra da Capivara usa uma diversidade muito maior.”

Tempo e recursos

Segundo o primatólogo, quanto mais tempo os macacos passam no chão, mais oportunidade têm acesso ao recurso, até o ponto de inovar, como no caso das fêmeas que arremessam pedrinhas. “É preciso estar no chão um bom período para ter tempo de inovar, o que esse grupo da Serra fez, inclusive, com ferramentas para cavar.”

Ainda de acordo com ele, a terrestrialidade não é o único fator que influencia o uso de maior diversidade de ferramentas. “A disponibilidade do recurso é outro fator. A Fazenda Boa Vista tem menos recurso lítico, então pode ser que isso influencie também. Mas, por outro lado, sabemos que um fator que limita o uso de ferramentas de pedra é o tamanho. A Fazenda Boa Vista tem pedras grandes, pois os macacos ali quebram cocos grandes. Ora, se tem pedra grande, tem pequena também. Mas, eles não as usam para cavar, como os da Serra da Capivara.”

Para chegar à taxa de uso do solo pelos macacos-prego, os cientistas usaram uma amostragem de varredura. “Seguimos o grupo durante dois anos, praticamente todos os dias. Eram 30 a 40 indivíduos, metade adultos e metade imaturos. A cada 20 minutos, tomávamos nota das atividades de todos. É uma metodologia básica para estudo de comportamento de animais sociais, que vivem em grupo. Além do uso de ferramentas, eu estava prestando atenção ao que estavam comendo, se estavam fazendo grooming [catação] ou se deslocando. Incluí ainda na observação o local em que eles estavam [altura do chão]. Neste caso, para ver o estrato do espaço que estavam utilizando. Tenho esses dados agrupados por estação: chuvosa e seca. E por indivíduo: adulto, juvenil, macho e fêmea.”

Falótico afirma que uma hipótese descrita na literatura científica – de que as fêmeas teriam aversão a risco e iriam menos para o chão – não foi confirmada pela dupla que assina o trabalho. “Não percebemos diferenças de sexo na ida para o solo. Há diferença, mas pouca, quando se compara o tempo que o grupo, no geral, passou no chão (41%) e o tempo em que apenas os indivíduos adultos passaram no chão (43%).”

O trabalho foi apoiado pela FAPESP por meio de uma bolsa de doutorado no Brasil, de um Auxílio à Pesquisa Regular e de um Auxílio à Pesquisa Jovens Pesquisadores.  

O primatólogo adianta que, em um futuro trabalho, pretende-se verificar se uma terceira população encaixa-se nessa hipótese da correlação entre a terrestrialidade e a diversidade de uso de ferramentas. “É uma população do Ceará, do Parque Nacional de Ubajara, que estamos estudando. Também nos interessa a influência da terrestrialidade no uso de ferramentas, inclusive a ideia de percepção de risco no solo. Tentar perceber a resposta deles ao que percebem como risco, se os macacos estão mais atentos a possíveis perigos quando estão no solo.”

Cuidados adaptados

O trabalho com a população do Parque de Ubajara gerou um segundo artigo, publicado na revista Primates e assinado por Tatiane Valença, mestre em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com Falótico. O artigo descreve a vida e a morte de um macaco infante que, por conta de uma deficiência na perna, viveu apenas 2 meses. E mostra que a terrestrialidade pode influenciar, inclusive, o comportamento dos macacos- prego em relação a indivíduos deficientes.

“Nossa contribuição maior, neste caso, foi saber como a fêmea lida com esse indivíduo que está se comportando de modo diferente. Os cuidados com o filhote deficiente antes da morte ainda não estavam descritos na literatura. Trata-se de um relato pioneiro para macacos-prego. De forma geral, esses cuidados não diferem muito do repertório já conhecido, mas houve alguns ajustes, porque o filhote apresentava uma instabilidade na posição em que ficava, nas costas da mãe. Como ele não conseguia se agarrar como os outros, a mãe aumentou a frequência de ajuste do filhote nas costas. Ajustar a posição do filhote é um comportamento normal, mas, neste caso, ela fez isso mais vezes. Um macho adulto que também carregou esse filhote deficiente algumas vezes aumentou igualmente a frequência de ajuste”, relata Valença.

Ela ressalta que a novidade é a hipótese de que a terrestrialidade possa ter influenciado a evolução do comportamento (ou dos cuidados) com indivíduos deficientes. “A hipótese de a arborealidade dificultar o carregamento de indivíduos mortos tinha sido proposta na literatura. Mas a hipótese de que isso poderia afetar o cuidado com indivíduos deficientes é algo que estamos propondo agora, a partir do que observamos.”

O trabalho também foi apoiado pela FAPESP  .

Valença lembra que o carregamento da cria depois de morta é comum. “Normalmente, esse vínculo de carregar e fazer catação se mantém depois da morte do filhote. Quanto tempo isso dura é que varia. Ela carregou o corpo por horas e não forrageou nada durante esse tempo, além de moscas que estavam no corpo. Não foi atrás de frutos, nem invertebrados e não estava se alimentando. Carregou um corpo com 14% do peso dela por mais de um quilômetro.”

O comportamento, porém, é mais extensamente observado em macacos terrestres, como os chimpanzés ou os Macaca fascicularis (ou macaco-cinomolgo). “Tem as que largam depois de algumas horas, tem as que carregam por dias. Há casos extremos até, de chimpanzés, que carregam por meses um filhote morto.”

No caso do macaco-prego, um outro cuidado que a fêmea tomou, e que não passou despercebido pelos pesquisadores, foi usar a cauda para segurar o filhote na hora de quebrar cocos. “Geralmente, para se estabilizar durante a atividade, eles costumam colocar a cauda no chão ou agarrar com a cauda na árvore, porque quebrar um coco com uma pedra é um comportamento que exige uma manipulação muito fina, e exige força. Essa fêmea, às vezes, levantava a cauda, e nós achamos que era para poder segurar o filhote, porque ele ficava muito instável especialmente nesses momentos de quebra de coco. E ela, sem o uso da cauda para se estabilizar, não estava tão apoiada quanto poderia.”

“Nessa terceira população, do Parque de Ubajara, há muita pedra no chão e vai ser muito interessante poder comparar com a Serra da Capivara, porque vamos conseguir controlar a variável ‘disponibilidade de recursos líticos’”, adianta Falótico.

O artigo Greater tool use diversity is associated with increased terrestriality in wild capuchin monkeys está disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ajpa.24740.

Já o estudo Life and death of a disabled wild capuchin monkey infant pode ser encontrado em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10329-023-01052-1.
 

[Agência FAPESP] Herança cultural pode influenciar a escolha de ferramentas por macacos-prego

Notícia publicada na Agência FAPESP em novembro/2022 sobre as pesquisas do projeto CapCult, que é desenvolvido por alguns dos nossos membros.

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Macaco-prego com um fruto de babaçu: alimento de casca dura precisa ser quebrado com ferramenta de pedra, uma inovação que nem todas as populações do gênero adotaram (foto: Tiago Falótico/EACH-USP)

André Julião | Agência FAPESP – Os macacos-prego são alguns dos poucos primatas a utilizar ferramentas no dia a dia. Um dos principais usos no Cerrado e na Caatinga são os martelos e bigornas de pedra, que servem para quebrar a casca de alimentos duros, como as vagens do jatobá e a castanha-de-caju.

Em estudo publicado na revista Scientific Reports, pesquisadores brasileiros mostraram que a correlação entre a dureza dos alimentos e o tamanho das ferramentas nem sempre é precisa como se pensava.

Ao observar três populações brasileiras de macacos-prego da espécie Sapajus libidinosus e medir a resistência dos recursos, o tamanho e peso das ferramentas usadas e a disponibilidade de pedras no local, os cientistas concluíram que a cultura do grupo – informação mantida ao longo de gerações por aprendizado social – também pode influenciar a escolha.

“Em uma das três populações analisadas, mesmo quando possuem pedras mais adequadas para determinado recurso, eles podem usar ferramentas desproporcionalmente pesadas, o que pode indicar um traço cultural daquele grupo”, explica Tiago Falótico, pesquisador da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) apoiado pela FAPESP.

A população a que o pesquisador se refere vive no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. A comparação se deu com outras duas, residentes no Piauí: no Parque Nacional Serra das Confusões e no Parque Nacional Serra da Capivara, distantes 100 quilômetros um do outro.

As ferramentas, no caso, referem-se a pedaços de rocha quartzito e arenito encontrados em locais conhecidos como sítios de quebra. Os animais frequentam esses lugares exclusivamente para ter acesso a esses martelos e bigornas. Os primeiros são batidos pelos macacos contra os alimentos, que ficam apoiados nas bigornas.

“Na Serra das Confusões, quando quebram frutos pequenos e menos resistentes, os macacos-prego usam ferramentas menores. Quando precisam abrir cocos maiores e duros, usam martelos grandes e pesados. Na Chapada dos Veadeiros, mesmo tendo variedade de ferramentas, eles usam as mais pesadas mesmo para alimentos mais frágeis”, conta o pesquisador.

Não por acaso, foi na Chapada dos Veadeiros que os pesquisadores registraram o maior peso já levantado por macacos-prego. Um indivíduo desses pequenos primatas, que têm 3,5 quilos em média (machos adultos), foi filmado erguendo um martelo de 4,65 quilos. “São verdadeiros halterofilistas”, nota Falótico.

Medições

Os resultados são fruto de um trabalho minucioso. Nos três locais onde vivem as populações de macacos-prego estudadas foram documentados os alimentos mais encontrados nos sítios de quebra, como coco do babaçu, jatobá, castanha-de-caju e semente de maniçoba (um parente próximo da mandioca).

Foi documentada ainda a disponibilidade de pedras, além do tamanho e o peso das ferramentas encontradas. Com um aparelho especial, os pesquisadores mediram ainda a resistência de cada alimento encontrado. Por fim, observaram e filmaram como os macacos de cada uma das populações utilizavam as ferramentas com determinados alimentos.

“Esperávamos encontrar uma correlação muito direta entre o tamanho e peso da ferramenta e o alimento, mas a população da Chapada dos Veadeiros, que tem uma grande disponibilidade de rochas e poderia escolher maiores ou menores, usa predominantemente as maiores. Esse comportamento é provavelmente herdado dos antepassados, uma diferenciação cultural das outras populações”, afirma Falótico.

Outra amostra de que os macacos têm aprendizado cultural é que, em outras regiões do Brasil, como na Serra de Itabaiana, em Sergipe, e na Chapada Diamantina, na Bahia, também há macacos-prego do mesmo gênero, pedras e os mesmos frutos disponíveis. No entanto, não há sítios de quebra e, portanto, o comportamento de abrir os frutos para comer. Já na Serra das Confusões, os macacos quebram vários alimentos, menos a castanha-de-caju, ainda que esta seja abundante.

“Não é só a disponibilidade ou a escassez de recursos que define a ocorrência do comportamento, mas a herança cultural”, diz.

Os pesquisadores agora realizam análises genéticas das três populações para verificar se as diferenças culturais podem ser detectadas no genoma.

O trabalho teve apoio da FAPESP também por meio de bolsa concedida a Tatiane Valença na EACH-USP.

Caminhos do homem

Em outro trabalho, publicado no Journal of Human Evolution, Falótico e um time de arqueólogos da Espanha, Alemanha e do Reino Unido analisaram, em um experimento de campo, a formação de lascas de pedra pelos macacos-prego quando usavam diferentes tipos de rocha como bigorna.

Na natureza, os fragmentos são formados quando esses primatas batem uma pedra na outra para utilizar o pó produzido para passar no corpo e nos dentes. Não se sabe para que os macacos-prego usam esse produto, mas os pesquisadores acreditam que ele possa ter efeito contra parasitas. No experimento, a fragmentação das bigornas de material mais homogêneo também criou esses tipos de lascas.

As lascas, contudo, não são usadas pelos macacos, embora muito parecidas com as ferramentas líticas encontradas em sítios arqueológicos de várias partes do mundo. A hipótese dos pesquisadores é de que, antes de criarem lascas intencionalmente para usar como ferramentas, os primeiros seres humanos as obtiveram por acidente.

“Da mesma forma, em tese, os macacos-prego podem passar a usar lascas no futuro, caso um indivíduo inovador comece a usar e os outros aprendam observando. Por isso, esses primatas podem ser um modelo para entender a evolução humana”, aponta o brasileiro.

Em um trabalho anterior, o grupo mostrou como as ferramentas líticas usadas pela população de macacos-prego da Serra da Capivara ganham marcas específicas de acordo com o uso (leia mais em: agencia.fapesp.br/35137/).

A comparação das marcas nas ferramentas dos macacos com as dos hominídeos pode ajudar a desvendar como os primeiros humanos usavam esses instrumentos líticos. Com isso, os macacos-prego brasileiros abrem caminho para que se conheça melhor nossos antepassados.

O artigo Stone tools differences across three capuchin monkey populations: food’s physical properties, ecology, and culture está disponível em acesso aberto no link: www.nature.com/articles/s41598-022-18661-3.

E o estudo A primate model for the origin of flake technology pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248422001105.
 


Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.